O meu Pai devia ser pequeno demais para se lembrar, porque realmente o que sei era o que ele contava daquilo que os pais dele lhe diziam.
Viver em Lisboa num andar alto na zona do Castelo de São Jorge, nos tempos em que era habitual fazer várias vezes ao ano umas intentonas, a que chamavam revoluções... era um aborrecimento. Viver ao lado da Casa do Menino de Deus nem sempre salvava.
Sempre que do Castelo se davam uns tiros que tinham resposta a partir de uns barcos no Tejo, ou vive versa, havia sempre janelas, paredes e tachos com buracos de bala. As pessoas fugiam para os andares mais baixos e quando tudo voltava “à normalidade”, as pessoas, todos amigos como dantes, saíam à rua enquanto os outros íam medir os estragos.
Isto foi uma normalidade que veio de uma forma mais acesa desde a revolução do 5 de Outubro, até à do 28 de Maio de 1926 que acabou por colocar no poder o Dr Oliveira Salazar.
Pouco depois vão viver para a Rua do Bemformoso, onde entre outras coisas havia uma taberna que se chamava convenientemente “o Farta Brutos”. Foi nesse local que eu vi uma ardósia onde se recomendava o prato do dia... “oujá iscas”
Um dia o meu avô fartou-se e pensou em ir viver para a Praça das Novas Nações, ao pé do então bairro das Colónias, onde cada rua tinha o nome de uma. A morte levou-o e os dias de Lisboa acabaram lá no Bemformoso, por cima da mercearia deles.
Como já contei em histórias anteriores, o meu Pai, a Mãe e o gato Morcego, metem-se no “Colonial” e vão para Lourenço Marques.
Lá viveram algures numa rua de um bairro muito popular, a Manhangalene. Um dia, o meu Pai junta-se com o Tio Fausto e constroem uma casa em plena Rua Afonso Albuquerque, já lá para os lados da Polana.
Os meus pais não viviam nessa casa e por isso quando nasci fui para a Avenida 24 de Julho, num primeiro andar, onde eu passava a maior parte do tempo entre o terraço das traseiras e a varanda.
Por baixo havia uma loja de componentes electricos onde certo dia de 1963 apareceu na montra uma caixa estranha que passava uns filmes. O meu pai disse-me ser uma televisão. Ora, na minha terra não havia TV e na altura também não havia video, no entanto lembro-me daquela caixa estar a passar imagens a preto e branco... alguma coisa havia de ser.

Na esquina seguinte, saíndo do prédio para o lado esquerdo, havia uma mercearia de um senhor que usava uma bata branca. Lá, o meu pai comprava uma parte das coisas lá para casa. Desde vinho do Dão a Queijo da Serra e até, por vezes, Água das Pedras para as indisposições habituais provocadas por água mal filtrada ou camarões e ameijoas estragadas pelo calor. O queijo sabia-me sempre ao mesmo mas havia a tradição de se cortar um pedacinho para o cliente provar.
Por essa altura fiquei a saber por acto próprio que nunca se deve dizer a uma criança, não faças isto. para aí no dia 8 de Agosto de 1963, estava a ajudar a minha mãe a descascar favas. Quando ía lavar as mãos, a minha mãe disse-me para não tocar nas camisas do meu pai, que estavam a secar. Que raio de ideia mamã! Isso é o mesmo que dizer ao meu gato para não tocar no fiambre que está no prato. Passado um bocado lá estava a ouvir da minha mãe, enquanto nas camisas, deus saberá porquê, apareceram uma nódoas escuras e estranhas.

Nesse local vi passar o Papa Paulo VI, o Presidente Américo Tomás, e várias vezes um velho camião de bombeiros, quase sempre o mesmo, que se arrastava lentamente a caminho dos fogos habituais nas casas de madeira e zinco dos arredores. Na altura chamavam-lhes palhotas, mas na realidade não eram; eram simplesmente de madeira e zinco.
O camião lá ía, e a sirene que era de manivela, era tocada ferneticamente por um dos bombeiros, enquanto miúdos corriam rua acima, ora ultrapassando, ora simplesmente acompanhando o camiãozinho e a sua sirene.
Numa dessas casas do Bairro de Angola, vivia o senhor que vendia amendoins ao meu pai no mercado. Outra coisa que ele se queixava além dos incendios, era de que sempre que havia inundações, tinha que estar a descascar os amendoins com os pés dentro de água.
A primeira escola onde andei, a Escola Especial, era só dois quarteirões abaixo desse apartamento na 24 de Julho. O director era um senhor chamado Malveiro; uma besta mal educada e violenta. Eu pouco imaginava de uma escola. Noss dias que antecederam a ida para lá, eu enchia a malinha encarnada que tinha por fora um boneco do lobo mau, com todos os livros. Depois passeava pela casa para um lado e para o outro para ter a ideia sobre o que seria o ir para a escola.
O primeiro livro que tive foi a Cartilha Maternal do João de Deus. Com aquele livrinho eu fui para a escola a saber todo o abecedário e a construção de palavras simples.
A primeira classe foi passada literalmente com essa cartilha e a aprender contas e a tabuada.
Andei dois anos nessa escola. Fiz a primeira e quase a segunda classe. Como vim para Portugal em Maio, já não cheguei a fazer o exame.
Na segunda classe já tinhamos um livro de leitura, com uma diversidade de textos interessantes.
se eles imaginassem que eu não era batizado, tinham-me usado como exemplo para o Mal e o meu número na escola deveria ser 666.
Todos eram convenientes à situação politica do País, embora tanto em Moçambique como em Angola a vida fosse imcomparávelmente melhor a nível politico e social, bem como no que dizia respeito à oferta. Os textos condicionavam a formação das crianças de uma forma a acreditar no conjunto de Deus, Pátria e Família, conforme era ideia do estado, promovendo a ideia do homem como o chefe da família, a que todos deviam obedecer.
Em português de Lourenço Marques, de Moçambique mais ou menos em geral, apartamento dizia-se “Flat”; inglesismos. Os inglesismos provocados pela proximidade da África do Sul, não se limitavam à língua portuguesa, porque na língua dos Landins, a maior tribo da região, chave, dizia-se “maqui”, do inglês “kee”.
No dia 24 de Dezembro de 1964 o Tio Fausto fartou-se da vida e enforcou-se no galinheiro. Foi um acontecimento horrivel para a qual não tenho palavras que não sejam um misto de tristeza e até de uma certa revolta. Não sei expressar a dureza da situação de outra forma, especialmente porque para mim, com quatro anos acabados de fazer, foi o meu primeiro contacto próximo com uma vida que deixou de existir. Passei vários dias a pensar no assunto, embora nunca tivesse alguém com quem falar sobre isso. Por vezes eu queria falar mas a minha mãe dizia que “não era conversa para o menino”.
Nesse Natal, um amigo de longa data e que era comissário no “Príncipe Perfeito, um dos paquetes da Companhia Nacional de Navegação, que fazia as carreiras para Moçambique, ía lá a casa; trazia leitão para a ceia. Foi assim que nesse 24 de Dezembro, além da morte, tive também leitão pela primeira vez. Não sei se foi por causa da pressão do acontecimento, mas também não gostei do leitão.
Ora a casa onde o Tio Fausto vivia com a minha Avó paterna era a da Avenida Afonso de Albuquerque, a casa que ele tinha construído com o meu pai. Custa-me imaginar o meu pai a fazer uma casa, quando ele não mudava um pneu nem arranjava uma persiana. Bem sei que ele dizia que cada pessoa no seu “metier”. Ele não esperava encontrar o senhor das persianas a fazer uma análise qualquer do foro psicológico, como ele faria.

Foi então no princípio de 1965 que fui viver para essa casa. Lá viviamos cinco. Eu e os meus pais, a minha avó e o gato Morcego II, descendente no nome, daquele outro gato que tinha viajado de Lisboa em 1940. Digo descendente no nome porque levou com ele por ser preto, como o original, porque este Morcego nasceu em 1960 e o outro tinha morrido em meados dos anos 50.
Essa era uma grande casa. Foi nessa casa que conheci pela primeira vez uma rapariga. Era a minha vizinha Capitolina, a quem eu chamava criolina. Era uns três anos mais velha que eu. Brincava comigo sempre que possivel e eu passava para o quintal da casa dela trepando um portão e descendo para o outro lado apoiando-me num escadote pendurado no muro. Um dia o escadote que estava mal preso, caíu-me em cima e magoei-me bastante. Fugi e entrei pelo portão de minha casa. Não disse nada aos meus pais, senão ía ouvir e ainda corria o risco de que me batessem por causa disso. Mais a minha mãe que o meu pai, batiam-me, muitas vezes por eu fazer coisas que nem imaginava estarem mal, outras que nem sei porquê. Uma coisa que aprendi rápidamente era que se apanhava mais vezes por dizer a verdade do que por não dizer nada. Ao longo dos anos foram muitas as vezes que não disse nada ou menti, para não ter que os ouvir. Nunca eu tería corrido alguns riscos estúpidos se tivesse podido conversar com eles. Nunca duvidei do amor deles, mesmo de um com o outro, mas ninguém é perfeito e os tempos eram outros.
A Capitolina tinha mesmo ar de menina arranjadinha. Um dia partilhou comigo fiambre e batatas fritas do lanche dela. Também ouve um dia em que me disse para eu fechar os olhos e abrir a boca... enfiou-me com uma malageta dentro da boca e eu passei as horas seguintes a beber água. Tinha sido enganado pela primeira vez por uma mulher, aos quatro anos de idade.
A Capitolina claro que vivia com os pais. Um dia foi embora com eles para o norte em busca de hipotetica melhoria de vida. Depois veio o 25 de Abril e a vontade de libertação e independencia dos povos locais, fez que entrassem lá pela “machamba” e os matassem. Por uma questão de provável manifestação de revolta, claro que a violaram e cortaram o peito, antes de a matar. Porque não? Afinal aos 17 anos devia ser uma miúda bem boa...

Foi na Afonso de Albuquerque que eu comecei a gostar de cerveja, isto depois de esvaziar as garrafas que o meu pai punha no caixotinho. Ele nunca bebia as garrafas até ao fim e eu ía e “limpava” as sobras. O alcool não se ficava por aí, porque nos meus aniversários e deles, no Natal e no Ano Novo, havia sempre Espumante Monte Castro “Doce”, ou verde branco Gatão, Mateus Rosé... aquilo que de uma forma geral chegava lá entre 1964 e 1968. Eu tinha sempre direito a um, dois ou três centímetros do vinho ou espumante. Conforme eu ía crescendo, a quantidade no copo também. Cada vez que eles viravam as costas, eu bebia tudo e entretanto repunha no copo a quantidade que lá estava antes. De vez em quando eu também visitada a garrafa do Martini ou do Porto “Lacrima Cristi” que o meu pai tinha na garrafeira. Ainda não era apreciador de Whisky, ou então era por não gostar muito do gosto do “Haig”.
Essa casa tinha jardim, a que eu não ligava, mas que foi onde pela primeira vez na vida descobri que a música não vinha só da Rádio. Eu estava a brincar quando comecei a ouvir música vinda do lado da rua; estridente. Era 22 de Fevereiro de 1966, dia de entrudo, vinha uma banda pela rua abaixo a tocar. Vinham a tocar um exito do Chico Buarque de Holanda, convenientemente chamada de “A banda a passar”. Para mim o carnaval significava uma máscara com a cara de um elefante que o meu pai me tinha comprado um ano antes na “Casa Coimbra”, ao pé do “Edificio Fonte Azul” onde ele trabalhava na Direcção de Agricultura e Florestas. Era Sábado, não me lembro qual, nem interessa. Ele deixou-me dentro do carro porque estava a chover e foi a essa loja comprar-me a máscara. Claro que vi a banda a passar, os seus musicos e as “majorettes”, através dos buracos para os olhos na máscara do elefante.
Na rádio, era tempo de Tom Jones e Engelbert Humperdinck nos tops; e também já se ouvia Beatles.
Certa manhã no fim de 1967 fui à praia com o meu pai. Parámos para por 20 escudos de gasolina e o senhor da bomba deu-me um balão encarnado. Até aos sete anos já tinha mastigado 4 pastilhas elásticas das quais uma tinha engolido; para ver o efeito. Já me tinham dado uns quantos balões entre os quais um que era a cabeça de um esquilo. Nunca me tinham era dado um balão que flutuava sem cair como os outros.
Íamos pela estrada fora quando depois do meu pai passar por cima de uma jibóia, eu me distraí a olhar para trás e larguei o balão, que entretanto voou pela janela do carro. Foi um balão efémero. Nessa manhã havia mais coisas a correr mal, entre os quais o meu pai ter atolado o carro junto à praia. Ficou lá entretido a desenterrá-lo e assim acabámos por já não ir à praia.

Era no quintal, que eu passava mais tempo, usavando-o para brincar sózinho, com os meus carrinhos, ou com a espingarda que tinha uma rolha na ponta e que eu usava para dar tiros no gato Morcego II.
Os carrinhos eram da Matchbox. Alguns eram máquinas tipo “Caterpilar”, cilindros, tractores. Davam para fazer estradas onde depois andavam os outros carrinhos entre os quais autocarros. Eu embora os sujasse bastante, não era de grandes acidentes, excepto num dia que incendiei um autocarro depois de o regar com alcool.
Os carrinhos bem como as suas caixas resistiam aceitávelemte. De vez em quando lavava-os e depois guardava-os por ordem nas suas caixinhas.
Em Lourenço Marques, o último carrinho que me compraram foi um Rolls Royce descapotável. O meu pai é que mos comprava habitualmente, mas este foi o primeiro a ser comprado pela minha mãe. Não me lembro do nome da loja. Era mesmo ao lado do Hotel Tamariz, junto à Praça 7 de Março a seguir ao Banco Totta, numa das poucas ruas que acho que não mudou para um nome de chinez, ou russo, marxista leninista; Consiglieri Pedroso.
Foi na Praça 7 de Março que numa loja de chineses a minha mãe comprou algo muito significativo; um conjunto de chá e outro de café. Ambos de elevada qualidade já que loja de chinezes, é loja de chinezes em qualquer local da terra e é sabido que os preços são normalmente pequeninos. Ora a verdade é que aqueles dois conjuntos custaram muitos “contos”. Um dia casei e a prenda de casamento dos meus pais era exactamente esses dois conjuntos de grande valor..
A noite de 2 de Maio de 1968 foi a última que passei com os meus pais na casa da Afonso Albuquerque.
De 3 a 18 de Maio vivemos no Hotel, onde pela primeira vez dormi numa cama que não era a minha.
O último jantar na nossa casa da Afonso de Albuquerque foi salsinhas de lata com ovos mechidos. Por coincidencia, a última vez que a minha mãe cozinhou em casa fez exactamente o mesmo que tinha feito no dia em que cozinhou pela primeira vez para o meu pai. Salsichas de lata não são um prato “gourmet”, mas é definitivamente fácil de usar.
Do dia 2 de Maio ficaram-me duas recordações mais fortes... o cheiro da palha que servia dentro dos caixotes para acondicionar as coisas que viriam no barco para Portugal, e o bife do jantar, um memorável bife com batatas e arroz de tomate, ovos estrelados. Foi o bife mais duro que me lembro em toda a minha existencia, comido num restaurante na Praça 7 de Março, que agora se chama 25 de Junho; o dia da independência.
O meu acto mais significativo da estadia no Hotel foi uma experiencia no nosso quarto com um candeeiro de mesa de cabeceira. Por percaução desliguei-o da tomada. Desmontei-o cuidadosamente para ver como era e depois, montei-o de novo. À noite como não acendia, a minha mãe colocou a ficha na tomada. O quarteirão inteiro ficou sem luz.
Na tarde seguinte, para remediar ter ficado sózinho, decidi fazer uns desenhos. Como não tinha lápis de cor ou canetas, tive que improvisar uma solução. De manhã havia várias folhas com desenhos no pátio da sala de pequeno almoço do hotel, alguns andares abaixo do nosso quarto. Claro que quando a minha mãe chegou ao quarto e viu os “batons” dela, entendeu de imediato de quem eram os bonecos nas folhinhas.
No dia 18 de Maio, pelo meio dia, com uma hora de atraso, o Paquete Infante D. Henrique, deixou Lourenço Marques. Nas 17 noites que se seguiram foi a minha nova morada. O navio tinha pela frente 18 dias de viagem.

Em Lourenço Marques eu bebia Coca Cola ou Fanta, mas à partida do barco, o meu Pai deu-me uma Shweppes de laranja. Que raio de coisa, um refrigerante de laranja que tinha pedaços desfeitos da fruta?
Até à Cidade do Cabo, foram três dias para virar o Cabo das Tormentas. Nunca tinha vomitado tanto. O meu pai resistia mais ou menos bem porque ele além de resistir bem às tempestades no mar, metia umas mixordias a que chamava de “shakes” de espumante com whisky. A verdade é que aparentemente no meio das ondas de oito a doze metros, só ele e uma velhota que também passava bastante tempo no bar, é que resistiam. Eu estava preocupado com o gatinho que vinha numa área para animais de estimação que era no topo do navio junto à chaminé. Ora se no meio da tempestade o navio balançava de uma forma tão violenta que várias vezes vi a parte da frente a entrar pela água dentro chegando-se a sentir a vibração dos hélices a trabalhar fora de água, nem que imaginar o que foi o susto para os bichinhos que íam lá emcima dentro de uma jaulas pequenas.
No navio havia um refeitório para as crianças já que na sala de refeições não eram admitidas crianças com menos de 12 anos. Foi assim que logo ao almoço do primeiro dia de viagem, além de almoçar sem os meus pais, experimentei pela primeira vez hamburger, a que chamavam delicadamente, bife raspado. Realmente bife raspado não é bem o mesmo...
Os dias seguintes foram passados a vomitar. Não por causa do bife mas sim por causa da tempestade. Andar de barco sem tempestade ou pelo menos sem umas ondas valentes, é o mesmo que ir a uma loja de gelados italianos para beber Sumol.
Eu que já provara no passado gostar de fiambre, estava nas minhas “sete quintas”. As minhas primeiras recordações do fiambre vem dos dias, na realidade noites, em que o meu pai ía à Pastelaria Princesa para o comprar. Eu vinha pela rua com o pacotinho colado ao meu nariz. Confesso que fazia o mesmo aos pastéis de nata. Chegavamos a casa e a minha mãe que antes de o guardar, dobrava sempre uma fatia que punha na minha boca. Outra ía para o meu pai que dizia “mnham”...
No barco apanhei-me no refeitório com fiambre e pão de leite à descrição. Inicialmente punha-o no pão, mas três dias depois já era directo para a boca. Claro que tal foi a quantidade que comi que, apanhei uma indigestão.
Chegar a Portugal pela primeira vez não me foi relevante. Não tinha grande noção de espaço geográfico e o facto da Terra ser redonda era-me indiferente.
Uma das minhas primeiras impressões sobre a cidade de Lisboa foi estranha. Os homens andavam todos de fato, cinzento, azul ou castanho e as mulheres todas de saia abaixo do joelho vestidas com cores pouco atraente. Eu só tinha sete anos mas embora não sonhasse que sem roupa as mulheres não eram iguais aos homens, achava estranho que as raparigas não adassem de mini saia e pelo menos algumas de camisa apertada com um nó, acima do umbigo.
Aqui nesta terra os “gays” chamavam-se maricas, paneleiros ou rabos, e as lésbicas fessureiras ou fufas. Pela primeira vez comecei a ter uma visão própria sobre a delicadeza, cultura e formação de uma parte significativa das pessoas deste país...
Na minha terra a água da praia era quente e as ondas pequenas, excepto nos dias intensos da “monção”. A primeira e única vez que fui à praia com o meu Pai e Mãe ao mesmo tempo foi em 17 de Agosto de 1968, à Praia do Magoito. Houve duas ou três coisas que me foram difíceis entender. O tamanho e rebentação das ondas, o frio que fazia para uma coisa que chamavam de Verão, e as pessoas que levavam “merendeiro” e que chegavam a comer arroz de galinha em plena praia, equipados de garrafão de vinho ao lado, enfiado na areia.
Havia ainda uma coisa muito estranha que era as mulheres andarem ou de fato de banho ou de vestido na praia. Na minha terra estava habituado a bikinis ou então quando a praia era mais reservada, e se estava só entre amigos, havia dias em que se ía para dentro de água sem roupa. Pronto, lá me conformei com ideia de que como isto era Portugal, a Metrópole, e eu estava na Europa, era por ser mais evoluído.
Com o passar dos anos a ideia de evolução foi-se perdendo conforme ouvia o meu Pai compar “isto” com o resto da Europa. Eu aborrecia-me por o ouvir ser tão duro, mas hoje acho é que ele devia ter viajado mais para poder ser mais real, acutilante e menos complacente com este pseudo espaço onde viviamos. Nesta terra eu não ouvia Ye Ye, e diziam que as raparigas que íam a boites eram putas...
Bem, voltando à história, chegámos na terça feira, 4 de Junho de 1968 e tinhamos à nossa espera o irmão da minha mãe.
Fomos de Volkswagen “Carocha” para Queluz, para a casa que a minha mãe tinha deixado no dia em que tinha decidido meter-se num avião e voar para o meu pai. A propósito de arroz de galinha, foi exactamente o almoço desse dia.
No dia seguinte fiquei lá por casa com a minha mãe.
O meu pai estava desejoso por me levar a Lisboa, à Lisboa dele, a Lisboa que ele tinha deixado 28 anos antes. Então na manhã de 6 de Junho, metemo-nos no autocarro para Lisboa, para os Restauradores. Foi a primeira vez que andei no Eduardo Jorge, a empresa dos autocarros amarelos e brancos que passava em Queluz e na Amadora; fui no Guy 71.
Era parecido com os últimos autocarros novos que a Empresa Oliveiras tinha na minha terra, mas tinham um trabalhar diferente. Depois aqui, na carreira, os autocarros dos arredores de Lisboa raramente traziam muitas coisas no tejadilho... e nem traziam sequer cabras, como eu via por vezes na carreira para o Chipamanine, para o Chibuto ou para Boane onde o meu pai tinha feito parte da tropa. Outra coisa que cá não havia e que lá, junto ao mercado, de onde saíam essas carreiras, era o cheiro ao milho que os senhores assavam no chão sobre brasas. Bem, nós temos a nossa versão, a chasatnha assada. Rápidamente associei o sítio de onde saía o autocarro para a Amadora, ao cheiro delas, enquanto que para ir apanhar o comboio ao Rossio, passava pelo aroma das bifanas na Rua Barros Queiróz ou na 1º de Dezembro.
Lisboa parecia-me grande embora tivesse um ar mais antigo que a minha terra. Bem, não era de admirar porque afinal era uma cidade bem mais antiga.
Quando chegou à hora de vir embora, o dia transformou-se numa experiencia absolutamente extra para a minha existencia. Entramos numa casa muito grande com três elevadores onde tinham um senhores para os conduzir do rés do chão, lá acima, e depois havia uma sala muito grande com umas coisas em zinco lá fora...
Bem na realidade tinha entrado na estação do Rossio, onde além de uma enorme escadaria, havia também esses elevadores onde por cinquenta centavos se viajava do piso térreo ao piso do salão das bilheteiras. Do lado esquerdo as bilheteiras da linha de Sintra e do lado direito as de outros serviços, incluíndo da linha do oeste. Eu estava habituado a comboios com enormes locomotivas a carvão e carruagens em madeira, enquanto aqui havia umas composições electricas triplas, em alumio polido que me fazia lembrar o zinco. O comboio saíu da Estação do Rossio e em momentos, anoiteceu. Tinhamos acabado de entrar num túnel. Eu sabia lá que havia túneis.
Terra esta tão estranha onde havia túneis mas não se via serpentes venenosas nas árvores...
Ilhas II
Os primeiros tempo em Portugal não foram dos mais felizes porque durante meses não vi os meus briquedos. Os caixotes com eles, incluindo o triciclo que o meu avô Manuel me tinha enviado um dia para Lourenço Marcque, estavam fechados na cave da casa de Queluz. Os brinquedos eram mesmo limitados e só me valia um camião Dodge com atrelado, que o meu pai me tinha comprado em Las Palmas.
A vida em Queluz foi relativamente efémera. Cheguei a tempo de fazer o exame da 1ª classe na escola primária da vila. O resto do Verão passou-se mais ou menos havendo alguns dias em que lá ía a Lisboa.
O meu Pai andava-se a preparar para a admissão o curso de Filosofia e por isso várias vezes íamos à Reitoria da Universidade ou Faculdade de Letras de Lisboa. Também íamos várias vezes a livrarias onde ele se ía documentando para a preparação que necessitava para o exame. Passou na escrita mas foi à oral. Os professores eram grandes senhores da época, entre os quais o Jorge Borges de Macedo que chegou a ser director da Torre do Tombo.
Da oral ficou uma impressão tão interessante que nos tempos que se iríam seguir, era normal nas nossas tardes de Sábado passadas no Chiado, entre a Livraria Bertrand e a Sá da Costa, encontrar alguns dos vultos dessa altura, que nesses locais passavam parte das tardes só para falarem uns com os outros. David Mourão Ferreira, Nemésio, o Padre Antunes, o próprio Borges de Macedo estavam habitualmente presentes. O meu Pai juntava-se naquelas longas trocas de ideias, enquanto eu ía olhando para os livros expostos. A certa altura acho que já sabia de cor as publicações da “Garnier Flamarion”, da “Que sai je?” ou da “Colecção Dois Mundos”.
Eu não estava habituado a lanchar, no entanto o meu Pai levava-me sempre a uma das pastelarias para comer uns bolos e beber um sumo. Desde o café “O Passo, até à “Brasileira” devemos ter passado por todos. Já me ía esquecendo que o meu sumo favorito na época era a “Laranjina C”, numa garrafinha formato laranja.
Por vezes levava-me à “Tendinha do Rossio” para comer uma sandes de presunto e uma gasosa, ou à “Ginginha” do Espinheira Moínhos, no Largo de São Domingos, para uma limonada ou um “Capilé”, enquanto ele bebia uma Ginginha “sem elas”. Nessa altura a “Tendinha” estava sempre cheia porque a sandes era um pãozinho com uma quantidade registável de presunto, e os empregados eram simpáticos; até diziam “boa tarde; que é que vai ser amigo?”. Depois passaram a uma só fatia fina de presunto dentro de uma carcaça. Substituiram a delicadeza por um simples “diga” e aumentaram escandalosamente os preços por estarem num local tipico. Perderam os clientes e culpam a crise.

Em Setembro fui com os meus pais até à Amadora, onde havia um construtor de nome João Pimenta que tinha uns apartamentos para alugar. A Reboleira estava em crescimento mas eles lá no escritório do J.Pimenta sugeriram um prédio acabado de construir na Amadora, na Rua Antero de Quental, no número 11, 1º andar esquerdo. Era mobilado e o preço “sugestivo” usando as palavras do meu pai. Foi para lá que fomos viver em 1 de Setembro de 1968.
As aulas no meu externato estavam a um mês de distancia.
O apartamento tinha uma sala com “kichenette” e um quarto; casa de banho, é claro. Os meus pais ficavam no quarto e eu na sala num sofá cama.
Os acontecimentos mais culturais que me aconteceram nesse apartamento foram ficaram-me marcados na memória. Bem, na realidade um deles ficou numa perna.

Quando a minha mãe ía à peixaria, eu ficava sózinho em casa. Por isso, eu que não tinha muito que fazer, ía espreitar dentro de armários, guarda fatos e gavetas. Foi no guarda fatos que encontrei uma coisa que desisti de tentar entender. Não cheirava a nada, não dava para comer e chamava-se “Modess”. Perguntei à minha mãe o que era e ela disse que eram pensos. Que treta... pensos daquele tamanho. Era mais uma razão para não me dizer o que era; pensava eu.
Numa gaveta havia cigarros e por isso lá fui experimentar. Como sabia que ela tinha um “faro apurado”, tive o cuidado de ir para a varanda. Tinha pensado que era bom mas afinal não tinha nenhum gosto extraordinário. Definitivamente eu preferia bolos aos cigarros “SG”.
Na madrugada do dia 29 de Fevereiro de 1969, acordei com o meu pai a pegar-me ao colo, um barulho muito estranho e o chão a abanar. Portanto, além dos túneis, de comboios electricos e de não haver Coca Cola, nesta terra havia outra coisa que eu desconhecia e a que chamam vulgarmente tremor de terra.
No dia 26 de Abril, um Sábado, a minha mãe levou-me à peixaria. Havia lá uma gatinha e eu queria vê-la. Estave eu junto à porta no degrau de entrada quando escorreguei. O chão estava molhado e as minhas sandálias de sola de borracha trataram de me por subitamente em cima da cauda da gatinha. Na cena seguinte os dentes dela estavam na minha perna. Lá fiquei a sangrar e a tentar que não fizessem mal à gata porque afinal tinha sido eu a aterrar em cima da cauda. Depois de jantar e por cuidado, o meu pai levou-me ao hospital de Santa Maria parar me verem a perna. Digo ver porque tirando passar um desinfectante qualquer, não fizeram mais nada.
Lá voltámos para casa na camioneta do Eduardo Jorge. O Motorista era um senhor forte, gago e bebado, que não parava nas paragens quando as pessoas tocavam a campaínha muito perto delas. Dizia ser perigoso porque tinha que travar repentinamente podendo o condutor do automóvel que nos seguia vir contra o nosso autocarro, provocando assim um acidente. Lá vinha eu no autocarro 199 para Queluz de Baixo, conduzido pelo senhor que era o pai da rapariga que viria a ser uns anos depois, a minha primeira namorada.
O primeiro ano no Externato Oliveira Martins corre bem. Passei e foi fácil. Eu não tinha experiencia com outras crianças porque onde eu tinha vivido, não havia miúdos para brincar.
Aqui, na Rua Antero de Quental, não me deixavam ir para a rua por causa dos automóveis. Eu conquistava a atenção do Manuel José que vivia do outro lado da rua no segundo andar do 22, dando-lhe bonecos que saíam de prémio dos gelados. Ele deixou de me falar quando os bonecos acabaram.

Na esquina havia a “Papelaria Pinho”, onde eu comecei a comprar “religiosamente” o “TimTim” e umas revistas maiores que saíam todos os meses, os “Clássicos Disney”. Em Lourenço Marques só havia “Pato Donald” e “Zé Carioca”, “Mickey”, ou o “Major Alvega”. Aqui a oferta era maior; até havia o “Tio Patinhas”. Na Pinho comprei o meu primeiro carrinho da Matchbox. Juntei um escudo por dia no mealheiro e quado tinha dinheiro suficiente lá fui comprar o carrinho, um transporte de carros de corrida, com publicidade à BP. Ainda bem que ninguém o comprou primeiro, porque assim, ainda hoje o tenho, tal como tantos outros coleccionados ao longo de anos.

Na esquina contrária havia uma pastelaria, a Riera, onde hoje está uma imobiliária. O talho é o mesmo e pouco a seguir, era a peixaria. Mas a minha loja favorita era a Nova Lusa, onde os meus pais íam comprar frango assado e batatas fritas. Os frangos davam dinheiro, especialmente numa época em que ainda não havia lojas de hamburguers nem pizzarias. O senhor Martins, o dono, deve ter-se fartado, ou envelhecido, porque agora está lá uma "boutique de pão", uma dessas lojas que tem dez variedades de pão pré congelado e que contribuem para o desaparecimento da verdadeira padaria, onde se fazia pão fresco, carcaças, pão de centeio ou de forma...
O ano de 1969 já ía a meio. O meu pai tinha feito primeiro ano de Filosofia e eu a 2ª Classe quando pelos vistos alguém decidiu mudar para um apartamento maior.

Fomos a uns quantos locais, mas na entrada da Reboleira havia dois prédios com varandas azuis, aos zigue zagues, de que os meus pais gostaram particularmente. O prédio onde ficámos no Largo Carlos Paredes tinha porteira, um ser que a minha mãe não gostava nada, porque em Paris também havia e eram umas coscovilheiras. Eu só tinha 8 anos, quase 9, e achava que a Maria era simpática e bonita. Até era bem feita, com umas covinhas na cara, o que anos mais tarde passei a achar erótico; as covinhas.
Fomos para lá viver em Setembro de 1969. Os móveis foram comprados na rua onde tinhamos vivido antes, ao Senhor Anibal, um carpinteiro que fazia todos tipo de mobiliário. Os aparelhos electricos e candeeiros foram adquiridos em locais diversos da Amadora, incluíndo, finalmente, uma televisão.
Eu entendia o que era uma televisão mas não me tinha lembrado que aquela coisa tinha horário. Ouvia falar de várias coisas entre as quais o Zip Zip, do Fialho Gouveia, Raul Solnado e com a participação do popular Carlos Cruz. Havia tembém séries de que gostava, especialmente um policial Inglês o “Departamento S” que passava ao mesmo tempo que o famoso “Os Vingadores”. Nas séries Norte americanas o meu favorito era o Robert Stack com “Name of the Game” passado para português como o “Jogo da Vida”.
É claro que havia uma coisa portuguesa a que acho que chamavam folhetim, que era o antecessor da telenovela, o Gente Nova, em que um dos jovens miúdos era o falecido António Feio que fazia de Luizinho. O Rui de Carvalho fazia de pai dele e o irmão da Florbela Queirós, acho que Carlos Queirós, fazia de irmão do Luisinho. Por acaso nem me importava de ver alguns episódios mas parece que é impossível porque a RTP destruiu uma parte significativa do material e mesmo do Zip Zip só ficou o episódio um, com a participação do grande Almada Negreiros.
Bem, o que mais me marcou mesmo é que no dia em que a televisão aterrou lá em casa, não me deixaram ver nada depois do noticiário da RTP. Assim, não me foi possível ver o último episódio do “Fugitivo”. Mandaram-me para a cama e eu lá fiquei a ouvir tudo até que o episódio acabou e finalmente adormeci.
Uma vez mais, nesta casa também não podia ir brincar para a rua. Agora não era por causa dos carros, era porque os meninos podiam ser raptados. Tinha um largo bem giro com árvores onde os miúdos jogavam à bola. Não falavam comigo porque eu estava só na varanda a olhar para eles.
Talvez os meus melhores dias da varanda tenham sido no Carnaval de 72 quando gastei dois tubos de serpentinas que ligavam a varanda às árvores em frente. Corria para um lado e para o outro com a máscara do elefante que o meu pai me tinha comprado em Lourenço Marques e outra dada pela minha mãe, que era a cabeça de um gato.
A minha última professora na escola foi a Caetana Caetano e desses tempos a única memória em imagem é dessa turma da 4ª Classe. Dos colegas, só com um tenho contacto, o Paulo Chatillon, que embora de “boas famílias” toda a vida quis ser motorista. Na foto da escola é o que está de pé de bata branca, por trás de mim.
Eu não podia fazer nada nem ir a lado algum sózinho, no entanto um passo fundamental para a descoberta do mundo aconteceu no dia 7 de Outubro de 1971, quando pela primeira vez viajei sózinho da escola para casa. De manhã o meu pai deixou-me à porta do externato para a apresentação dos professores no primeiro dia do primeiro ano do Ciclo Preparatório, uma coisa qua actualmente se chama 5º ano.
Era quase meio dia quando nos mandaram para casa. Eu lá fui do Externato para a Estação da Amadora para apanhar a carreira para Belém, que passava junto à minha casa. O autocarro era o 212 e sentei-me no lugar 47, na última fila à janela do lado da porta. O motorista era o Sr. José eo cobrador o Sr Pimenta que me passou o meu primeiro bilhete comprado por mim.
Francamente, as recordações do Externato não foram muito significativas e tirando umas cenas de pandacaria extrema no principio de cada ano que fazia com que não se metessem mais comigo o resto do ano. Os professores não eram nada de cativante, a não ser a de português, a Manuela. A Manuela era linda e as medidas 34 por todos os lados, assentavam especialmente bem nos dias em que ela ía de mini saia e não levava soutien.
No dia 13 de Junho de 1972, a empresa dos autocarros estreou 4 carros novos de lotação muito maior na carreira para Belém. A razão era a presença em Portugal da esquadrilha acrobática da Força Aérea Inglesa, os Red Arrows, que tinham voado propositadamente da sua base em Kemble na Inglaterra para vir fazer uma série de acrobacias no Tejo. A minha esperança de os ver foi-se depois de ver os autocarros a passarem cheios, uns atrás dos outros. O transito na realidade estava parado em toda a estrada de Sintra em direcção a Belém, de tanta gente que lá os queria ir ver. Lá desistimos da ida e eles tal como vieram, lá se foram no dia seguinte depois de uma pernoita na Base de Sintra ou do Montijo.

... fui com os meus pais dar uma volta a Belém. Há anos que eu ouvia falar dos pastéis de nata em Belém. Num dia que o meu pai me levou à torre de Belém, até pensei que era lá que se comiam essas maravilhas. Afinal não era. Eu nessa altura sonhava que um dia quando fosse grande podia entrar em pastelarias e comer os bolos todos que quisesse.
Houve um dia em que então, finalmente, lá fomos à Antiga Casa dos Pastéis de Belém; portanto, eu e os meus pais. O meu pai pediu “Sumol” para mim e veio “Fruto Real”. Para eles deve ter sido chá ou similar, e é claro, pastéis de nata. Pediu só uma dúzia que comemos. Depois, pediu mais uma dúzia que também comemos, tendo comentado no final que estava desiludido porque já não eram nada parecidos com os que comia antes de ir para Lourenço Marques em 1940. A mim soube-me muito bem e aquela dúzia que trouxemos para casa, também voou num instante.
Como é que eles seríam em 1940?
Algum tempo depois, o meu pai levou-me ao outro, à Verdadeira Casa dos Pastéis de Cerveja.
Só duas vezes fiz uns passeios maiores com os meus pais. Maiores quer dizer, ir até Mafra e Ericeira a partir da Amadora. Estas saídas tão raras que consegui fixar tudo o que acontecia. Nas duas vezes que fomos passear a Mafra almoçámos no mesmo local, um restaurante Roma, que hoje é um simples café, ou como também se chama por aqui, pão quente.
As duas vezes que lá fomos, para variar comemos o mesmo. Vitela assada com batatas fritas e arroz branco depois de uns filetes de pescada, pudim de flan... café para os meus pais.
O dia 25 de Abril, nos arredores de Lisboa, estava ligeiramente chuvoso e de manhã ao sair de casa achei estranho que os portões da Academia Militar estivessem fechados. Mal cheguei ao Externato mandaram-nos para casa. De volta, o Sr Moreira, o condutor do autocarro 200, vinha sem boné. Uma das primeiras coisas que compreendi foi que em dias de revolução, os motoristas dos autocarros não precisavam de usar boné.
Algum tempo aprendi outras coisas que nunca tinha visto antes. Aprendi que afinal se podiam pintar todas as paredes e muros com coisas politicas. Nessa altura a noção de “grafiti” ainda não existia por cá, por isso não parecia mal pintar numa parede, “Morte à burguesia e aos lacaios do capital”.
Toda a minha vida estava a mudar.
Tinha 13 anos e nesse ano não foi preciso fazer exames ou provas para passar no liceu. Deixamos de ter faltas às aulas e passámos a fumar nelas. Nos cinemas começaram a passar filmes e desenhos animados de todos os países que tivessem no nome “República Popular e Democrática”, tipo, todos os países que tal como nós tinhamos até à revolução, tivessem só um partido, uma bandeira normalmente vermelha, e onde as eleições tivessem resultados sempre acima dos 99,87% a favor do partido do governo. Passou a haver filmes porno, que antes só podiam ser vistos por algumas pessoas em particular. A Manuela do rés do chão da Praçeta do Casal Brandão passou a levar os amigos todos lá para casa deixando de ter que ter sexo com eles às escondidas dentro de um dos armários do Liceu Nacional da Amadora.
Estava à beira de descobrir que os cartazes politicos também serviam para outras coisas e que os melhores para fazer gigantescos charros de “erva” eram os do MRPP, o Movimento Revolucionário do Partido do Proletariado.
Era todo o principio de uma verdadeira revolução nas nossas vidas.
Os meus pais íam perder tudo o que tinham e eu ía ter que ir trabalhar pela primeira vez.
Aquela página do livro da segunda classe já não tinha que ser assim...