No entanto, com um bocado de esforço, consegue-se ligar tudo isto de forma a ficar razoável no espaço temporal e dar-nos mais umas dicas para conhecer a família e factos que mesmo sem grande importância aparente, fazem parte de momentos da sua existência.
Neste conjunto de documentos que fui vendo, os primeiros que me atraíram mais atenção foram os do Sr. Manoel Affonso das Neves, o avô materno da minha mãe que nasceu em 22 de Setembro de 1873.

cartão da Câmara Municipal de Lisboa faz referencia exclusivamente à sua admissão em 1888, portanto com 14 ou 15 anos. Ora ele aqui já é Calceteiro de 2ª classe. Da mesma forma que a idade para ser admitido varia bastante da realidade actual, também sei que ele fez parte do grupo que fez o passeio da avenida da Liberdade com o desenho que tem actualmente.

Contava-me a minha mãe que o avô tinha estado envolvido na construção dos passeios da avenida na forma actual. Na verdade o Manoel entrou para a câmara como “ajudante” e reformou-se como técnico no quadro de Engenharia por isso acredito que de uma forma ou outra tenha participado activamente na construção.

Era um interessado seguidor da Revolução soviética e lia Marx e Engels, conhecia profundamente o Leninismo e por isso terá sido influente na visão de esquerda do seu genro, o Manoel Gonçalves dos Reis e consequentemente na visão e atitude politica da minha mãe.
Quando a Pide esteve lá em casa a revirar tudo, nem sequer vira "o Capital" de Marx; ignorantes
Faleceu em 1945 e segundo dá para ver na notícia publicada no Jornal “A República”, viviam na altura em Queluz na Rua Vieitas Costa, nº 41.
Outros documentos permitem saber quem vivia onde e quando. Por isso a Licença de Porte de Arma do meu avô Manoel Gonçalves dos Reis, revela-nos a sua residência como sendo na Rua das Olarias, 65, 1º andar, no primeiro bairro da cidade de Lisboa.
A Rua das Olarias é a meio caminho entre o Bemformoso e o Bairro da Graça. Posso estar completamente errado mas se a minha avó materna tinha nascido na Graça, era amiga de infância da minha avó paterna, o meu avô paterno António, tinha a mercearia no Bemformoso… o meu pai ia-se por a passear à porta da loja do pai da minha mãe, a casa da Rússia, de bandeira vermelha enrolada. Quando a Pide aparecia, era a bandeira do Benfica, e o meu avô ria-se com a brincadeira.
Os documentos do Manoel Gonçalves dos Reis, o pai da minha mãe, mostram-nos factos interessantes, entre os quais a necessidade de ter licença para se ter isqueiro. Entretanto este mostra que entretanto terá mudado de residencia vivendo agora na Rua da Conceição.
O meu avô trabalhava em várias coisas, desde o comércio à industria, tendo até dois laboratórios em Coimbra. Um no campo agrário e outro quimico farmaceutico o SIER, Reis ao contrário. Para completar isto, era correspondente do Notícias Ilustrado, uma publicação do Diário de Noticias, sendo também o correspondente do jornal A República.
A colecção de passes de comboio é também bastante interessante. Tenho-os todos guardados, sendo possível ver que há épocas em que anda mais abonado, viajando em segunda classe. Outras nem por isso, porque viaja em 3ª classe. Há passes semestrais e anuais. Nunca viajava em 1ª classe porque o considerava um acto excessivamente discriminatório. Os meses em falta são claramente aqueles que estava preso pela policia politica em Caxias, ou em interrogatórios na António Maria Cardoso.Dos passes que escolhi, o mais recente, o de Julho de 1956, é o último que ele tem de 3ª classe. Assim, sei que este foi o último mês em que ele usou essa classe na sua vida.
Um ano depois com a entrada ao serviço dos comboios eléctricos na linha de Sintra, essa classe foi retirada, passando os comboios a ter só duas classes.
Da minha mãe também aqui mostro dois momentos da sua vida. O primeiro é ilustrado com a sua caderneta escolar do ano lectivo 1939 – 1940. Entre a Escola e o Liceu, havia a “Admissão ao Liceu” e este documento mostra as suas notas durante o mês de Março de 1940. Permite-nos ver a forma de avaliação continua, devo dizer diária, que daria resultado à nota de período, sem deixar de obrigar a um exame final.
Enquanto o meu pai, no atrás referido ano de 1956 ia ver a apresentação da equipe do Benfica de Lourenço Marques, a minha mãe planeava astutamente a maneira de ir lá ter com ele.
Chega o ano de 1959 e o meu pai está à beira de deixar de andar sempre acompanhado dia e noite por raparigas, diversas, todas ao mesmo tempo, para se tornar absolutamente monogâmico.
Os meus pais já eram amigos de longa data. A minha avó paterna até é madrinha de baptismo da minha mãe embora que por razões que ela lá sabia, esse facto não lhe fosse muito agradável.
Então a minha mãe, mete-se num avião Lockheed L1049 Constelation, da TAP, o “Mousinho de Albuquerque” e voa de Lisboa para Lourenço Marques. Como é hábito guarda sempre qualquer coisa do avião, Desta vez um pacotinho de pimenta. Voa na zona mais traseira do avião. Deus sabe porquê, passados uns anos, a traseira do avião é a minha preferida. Discute abertamente com a tripulação por causa de depois de umas horas de voo o avião voltar para Lisboa para apanhar uns passageiros que não tinham embarcado. Acusa-os de privilégios por serem, agentes da policia Politica. Aproveita para se queixar de darem cubos de açúcar para o sumo de toranja no aeroporto de Kano, na Nigéria, e manifesta pena por causa de ter que ir do avião para o aeroporto em cima de um camelo em Dacar; coitadinhos dos camelos.
O meu pai ainda em Lisboa juntava selos que recolhia de envelopes. Depois descolava os selos em água e secava-os ente pano cru. Vendia-os a uma loja de filatelia e com o dinheiro comprava livros; por vezes revistas. Desses tempos herdei um molho de “Texas Jack’s”.
Mas o hábito ficou-lhe e já nos anos cinquenta, comprava o “Capitão Morgan”, embora já não precisasse de vender selos. Agora comprava-os filatelicamente e um dos sub-produtos da filatelia movia-o com todo o interesse, os envelopes com carimbo de primeiro dia. Se a minha mãe tivesse voado uns anos depois, tinha vindo a jacto, não na TAP, mas na SABENA que durante uns anos usou um Boeing 707 dessa empresa para o voo referido no selo e carimbo do envelope.

Mas o hábito ficou-lhe e já nos anos cinquenta, comprava o “Capitão Morgan”, embora já não precisasse de vender selos. Agora comprava-os filatelicamente e um dos sub-produtos da filatelia movia-o com todo o interesse, os envelopes com carimbo de primeiro dia. Se a minha mãe tivesse voado uns anos depois, tinha vindo a jacto, não na TAP, mas na SABENA que durante uns anos usou um Boeing 707 dessa empresa para o voo referido no selo e carimbo do envelope.

Sem ter a ver com primeiros dias filatélicos ou marcofilia, entre outra correspondência arquivada, encontrei duas cartas enviadas ao meu pai e que achei interessantes. Não tenho a dúvida dele ser o destinatário já que a caixa postal 250 de Lourenço Marques era dele. Quer isto dizer, Mr Lourenzo Marques, não era ele, mas a caixa postal era mesmo dele.
O outro envelope não deixa de ser interessante já que lhe é enviado pelo Instituto Francês do Ultramar onde escrevem Moçambique, Angola entre parêntesis. Muito bem para um Instituto que tratava de matérias africanas.
Bem, algo que não tem a ver com envelopes é um recorte de jornal que encontrei. A Drª Ema Machado da Cruz era a médica da minha mãe e pelo visto devem ter-se conhecido por causa da ginástica para o parto. Na altura a preparação não era nada habitual mas a Drª Machado da Cruz era reconhecida localmente pela sua visão de vanguarda.
A prova de que nasci, além do facto da minha existência real, deve-se ao aparecimento de diversas revistas infantis. Ainda hoje guardo estas colecções completas de Mickeys, Tio Patinhas, Pato Donald e Zé Carioca. Não sei porquê mas as revistas estão todas direitinhas, bem como os catálogos dos carrinhos da Matchbox, que eu via cuidadosamente. No catálogo de 1963 a minha preferência ía para o autocarro cinza e para a carrinha de distribuição de leite.

O meu pai comprava-me os carrinhos na Casa Vilaça ou no Bazar Paris, de onde veio o catálogo de 1966. Este era o meu favorito, por causa da capa e de outros motivos no seu interior incluindo a cena do incêndio onde há carros de bombeiros e uma ambulância de Londres, misturados com autobombas de Denver no Colorado, USA. Mas nesse catálogo o que mais me atraia era a capa que eu associei a um desejo permanente de um dia ir a Londres. Tenho o autocarro laranja e a sua caixa imaculada, tal como acontece com tantos outros modelos. Ainda hoje paro no mesmo local e associa essa capa ao facto de estar ali ao vivo em Westminster.
Os gelados davam prémios e bonequinhos mas os detergentes para a roupa davam prémios diversos e em 1966, o Extra para a roupa à mão, dava livrinhos.
Em 1968, o meu avô materno morre o que leva a que a empresa que ele tinha em Coimbra tenha que ser vendida. Eu mudo de nome, quer isto dizer, perco um dos apelidos por uma questão de “politica doméstica”.
Nesse ano mudamo-nos de Moçambique para Portugal.
Na sequencia das coisas guardadas vou encontrando sequencialmente documentos dos mais diversos, incluindo uma colecção de figuras decalcáveis chamadas “Action Transfers”, que aparecem em Portugal cerca de 1970 a partir de um original da Letraset inglesa de 1966. Durante semanas, duas séries muito emotivas vão atrair a atenção de crianças como eu.
Em 14 de Dezembro de 1990, a Mafalda viaja pela primeira vez de avião e em 31 de Março de 1996 é a vez da Mónica fazer o seu batismo de voo. Por coincidencia o CS-TPA, um Fokker da Portugália vai ser para as duas em tempos diferentes o seu avião de batismo.
Realmente podemos guardar muita coisa ao longo de anos mas se não soubermos o que é, dificilmente conseguimos colocar essas coisas na história das nossas vidas.
Há imensos outros documentos que não referirei, mas um dos que encontrei é emotivo. O recibo de vencimento da primeira empresa onde trabalhei serve para concluir esta passagem pelos arquivos dos papeis da nossa vida.